PSICANÁLISE E DESTINOS DA SUBJETIVIDADE NA CONTEMPORANEIDADE
Prof. Dr. Vincenzo Di Matteo - Deptº de Filosofia da UFPE
“O século XIX foi realmente o século da psiquiatria, e se o século XX foi o da psicanálise,podemos perguntar-nos se o próximo não será o século das psicoterapias” (Roudinesco, 2000).
Sem as credenciais de um historiador do século XX e, menos ainda, de um profeta do séc. XXI, o Prof. Dr. Vincenzo Di Matteo lança um olhar retrospectivo e prospectivo sobre o lugar da psicanálise no movimento da cultura contemporânea.
Em seu texto ele busca focalizar as repercussões das teorias psicanalíticas na construção de discursos sobre a subjetividade, que segundo ele podem tanto se inscrever no horizonte cultural de um questionamento do sujeito da modernidade, quanto de um seu desaparecimento diante do mudado contexto cultural, do avanço das neurociências e da eficiência dos tratamentos farmacológicos.
A tese é de que os modelos teóricos construídos pela psicanálise para dar conta da subjetividade, foram e continuam fecundos a despeito do adverso quadro cultural contemporâneo.
Psicanálise e subjetividade: um olhar retrospectivo.
A idéia fundamental que perpassa as três revoluções (cosmológica, biológica e psicológica) é a de um descentramento do sujeito. Essa metáfora, já condensa em Freud uma pluralidade de sentidos. Não é apenas o descentramento da consciência para o inconsciente, mas também do eu para o outro (narcisismo) e já se anuncia o maior e o mais radical dos descentramentos, da consciência e do inconsciente para a pulsão.
Esse descentramento psicanalítico não é propriamente de natureza diferente daqueles que retiraram o homem do centro do cosmos e da vida, mas explicitam o que os outros dois já anunciavam ao retirar do homem a última ancoragem de sua pretensa superioridade. O eu não é autônomo, não é o centro nem mesmo do microcosmo do próprio psiquismo. Considerando um discurso - o discurso religioso, que sempre viu o homem como um ser de exceção, Freud denuncia uma espécie de auto-compreensão narcísica.
Afirmar que o ego não é senhor em sua própria casa decorre de duas descobertas da psicanálise que se remetem reciprocamente: a de que a sexualidade ou a vida de nossas pulsões sexuais não é inteiramente domável e a de que os processos mentais são, em si, fundamentalmente inconscientes.
Para dizer essas novidades Freud não recorre à linguagem filosófica, mas a modelos e conceitos retirados da física, química, biologia e neurofisiologia de seu tempo.
Bonneval, segundo Dr. Di Matteo mostra - além das divergências que a psiquiatria dinâmica possui, na primeira metade do séc. XX ela mesma se aproximou bastante da psicanálise ao tentar explicar o psiquismo não apenas a partir do modelo nosográfico de uma psiquiatria positivista, mas também do modelo cultural, fenomenológico e psicoterápico.
Os filósofos, por sua vez, passaram a ter certa disposição para repensar seu ‘sim’ ao método e ‘não’ à doutrina da psicanálise, abrindo-se para um certo ‘realismo’ do inconsciente.
Os psicanalistas, enfim, vêem mostrar que há divergências teóricas significativas a respeito da teoria e da clínica freudiana. Pode-se afirmar que duas concepções de psicanálise se confrontavam: uma que a situava no campo da neurofisiologia e outra no campo da fala e da linguagem. Observa-se de um lado uma prática terapêutica perpassada - na Inglaterra e na América - pela ideologia da teoria do Eu autônomo; por outro lado, aquela que pretendia resgatar a revolução freudiana da subjetividade.
A psicanálise não podia ser um instrumento de adaptação, uma utopia ou ideologia da felicidade, mas a instância crítica da normalização da subjetividade. No auge do estruturalismo, não foram poucos os intelectuais que viram na psicanálise e no retorno a Freud de Lacan a confirmação de um trabalho de desconstrução do sujeito da Modernidade que perpassa também a filosofia heideggeriana, a filosofia analítica, a pesquisa antropológica de Lévi-Strauss. Na realidade, nascia um novo e desconcertante discurso sobre o sujeito que se desatrelava da metafísica da subjetividade para situar-se no registro da linguagem e do Outro.
Em suma, é inegável a função socrática desempenhada pela psicanálise – na metade do século passado - quando problematizou o suposto saber da filosofia, psiquiatria e ciências humanas sobre o homem. Teriam sido aqueles – como os define Elizabeth Roudinesco: “nossos mais belos anos”? Assistiríamos, hoje a um certo declínio da psicanálise depois de nos ter proporcionado uma das maiores mudanças na auto imagem da raça humana?
Evidentemente, o contexto histórico cultural atual não é mais o daquela época e os psicanalistas se interrogam, questionam e buscam as alternativas teórico-clínicas para dar conta das novas demandas. Estudos avaliativos do impacto teórico e mediático da psicanálise se multiplicaram especialmente por ocasião do cinqüentenário da morte de Freud e da passagem do século. A psicanálise foi como que obrigada a deitar-se no divã, que ela própria inventou, para falar de si mesma e de suas inquietações
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Psicanálise e Subjetividade: um olhar prospectivo.
Prof. Dr. Vincenzo Di Matteo nos insere numa série de perguntas como: O que é possível esperar da psicanálise nesse novo contexto cultural marcado por uma economia globalizada, uma cultura narcísica e do espetáculo, uma sociedade depressiva, uma crescente psiquiatrização biológica das doenças do espírito, enfim, pela substituição do homem trágico da psicanálise enredado nos seus conflitos, pelo homem comportamental que busca regular seus ‘distúrbios’ por psicotrópicos e não mais pelo ultrapassado remédio psicanalítico?
Há, de fato, uma certa substituição do homo psicologicus pelo homo comportamentalis, uma diminuição do espaço da subjetividade e um avanço tecnológico e farmacológico que pretendem regular antigas e novas formas de sofrimento, atuando prevalentemente, quanto não exclusivamente, sobre o físico, o biológico, o neurofisiológico.
Enfim, a paranóia terrorista ou pura e simplesmente os interesses de governos e de grandes corporações parecem reduzir cada vez mais o espaço de privacidade, tornando os sujeitos mais vigiados e normatizados.
Talvez seja por causa disso tudo que a pergunta pelo humano se recoloca com toda sua inquietante dramaticidade e a psicanálise é desafiada a enriquecer o já vasto vocabulário que inventou para descrever nossas subjetividades.
Nesse sentido, descontando as razões que podem ser filhas do desejo e, portanto, da ilusão, é possível que existam razões plausíveis para acreditar que a psicanálise – graças ao seu pluralismo teórico e clínico - continuará a desempenhar a função socrática de questionar o saber sobre nós mesmos; ensaiar respostas para o eterno imperativo do oráculo ‘conhece-te a ti mesmo’, atualizado em ‘constrói-te a ti mesmo’ e animar com isto as múltiplas manifestações da cultura.
Por fim nosso autor nos alerta sobre o texto freudiano ‘ O mal-estar da civilização’ apontando uma série de dificuldades que nenhum avanço tecnológico ou farmacológico poderá contornar, como a de tornar-se adulto (a infância como destino); saber amar (caráter errante do desejo); conhecer-se em profundidade (inconsciente); lidar com conflitos (Ego, pobre diabo, servindo a três senhores); ser ético e não apenas moral (superego); assumir o trágico da cultura, evidenciado na luta de gigantes entre Eros e Tanatos e, enfim, o desamparo fundamental e a impossibilidade de “ser feliz.”
Se a psicanálise não será mais um farol, não deixa de ser uma luz ainda indispensável a iluminar a existência humana. Nesse sentido, é muito improvável que se possam ignorar ou esquecer a constelação semântica da subjetividade proposta por esta ciência que busca ser uma ciência geral da psique humana.
Escólio: Cristianne Spirandeli Marques e Paula Gonçalves
Referência
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