Bondade
“Um sentimento só pode ser conhecido quando penetramos em seu mundo e nos deixamos tomar por ele. Estes, os sentimentos, constituem nosso quotidiano e não dizem respeito ao sujeito individual, mas a um mundo subjetivo, a um mundo vivido de relações, e particular a cada momento”. Assim nos dizia Fábio Herrmann (2002) sobre a condição de se estudar os sentimentos.
Nesse sentido ele nos conta uma história onde é tomado por um deles, ponto de partida que lhe serviu para pensá-lo.
Herrmann atravessava de Salvador a Itaparica em uma barca, ao seu lado se encontrava um casal, segundo ele já passado em anos, com uma criança de colo. Dizia ainda: “A criança dormita, a mulher a embala, o sujeito quer puxar conversa. ‘Demora, não? E com esse calor abafado”.
Logo continua: “Então quando me levanto para esticar as pernas, a garotinha agarra-me o dedo e fica a balançá-lo, parece que ao sabor do jogo da barca. Pronto, já somos da família; capturados em sua órbita estreita, é preciso entabular conversa”. No barco dizem todos sobre a demora na travessia, e depois a senhora começa a contar pra Fábio (sob seu despertado interesse) que a criança é sua filha, na verdade neta que ela própria tomou como filha, relatando que “a mãe não cuida, é menina ainda, uns dezesseis anos mais ou menos...”. Mais a frente a senhora explica que a mãe de Gislane mora na roça e que não quer se mudar pra Salvador pra não ter que cuidar da criança, assim fica na roça trabalhando puxando enxada. E narra que a própria filha “também” é filha de criação: “...a gente vivia no Recôncavo, trabalhava num sítio, ali a encontrei, ainda pequenininha, jogada no chiqueiro... toda emporcalhada e chorando de fome. Aí pegamos pra criar. O que se podia fazer?”. Perguntada se era apenas ela de filha a senhora responde que haviam mais oito, “fora os que morreram”.
Sobre quando a filha engravidou a senhora disse: “Pois bem, zanguei e falei duro: tu tens família, não é o caso de cair na vida. E ela: sim mãinha a senhora que sabe. Ficou conosco, teve esta criança, passou o resguardo. Então Adeus”. “Então o que se havia de fazer? Registramos Gislane. Mais prático não foi?”. A senhora ainda fala da possibilidade que havia de a filha arrumar um emprego na cidade, por ser instruída, mas “nunca que quis”, preferiu mesmo “ficar festejando, namorando, pra acabar no cabo da enxada”.
A barca chega a seu destino e perto de partir a menininha dá o último balanço de despedida no dedo de Fábio, se “aninhando no colo da mãe-avó”.
Pois bem, o que haveria Herrmann vivido nessa experiência? Que sentimento fora acometido na relação com esse pequeno grupo que lhe fez companhia na travessia?
Vemos também junto com Fábio que a senhora, a boa senhora cumpre um destino regular de adoções plenas, acima e além do cumprimento do instinto materno. Ela não faz porque deve fazer, mas como ela bem disse, porque é mais prático; assim o fez, e provavelmente faria outra vez se Gislaine também “embarrigasse”. Eis aqui a avó postiça, mais mãe do que a mãe carnal, mais nela do que ela mesma estava, zangada, mas sempre cumpridora. E nesse sentido vai tomando contornos a bondade, essa que é dura e severa, que perdoa e não perdoa, mas repete-se. Ela, a bondade, não pensa, faz o que tem que ser feito, sem contentamento ou autocomplacência.
Na bondade o superego parece se anular frente ao ego, ou seja, em nome do cumprimento do destino não se constituem ou se sustentam sentidos da ordem da moral, dos deveres, da conveniência, mas uma concordância com o que tem que ser. A bondade é egóica, e se dá quando o ego se dissolve frente os fatos da vida, e tendo esse “incorporado os fatos até a medula, nos detém sem força alguma, como a menina a segurar meu dedo; o ritmo que impõe ao sujeito é perfeitamente inelutável, entra-se para a família da bondade sem querer ou até a contragosto”, dizia Herrmann.
Então que pela relação se revela o mundo subjetivo constitutivo dos sentimentos, como revelou para Fábio sob a condição de relação com o pequeno grupo da história aqui relatada, quando fora acometido pelo sentimento da bondade, e assim ele ainda alerta aos leitores sobre o cuidado de encontrar a senhora avó-mãe, pois “nos penetraríamos de paz feroz que teríamos de fazer força extrema para retornar ao cinismo psicanalítico”, à condição que permite pensar os sentidos.
A bondade assim se desenha sob essa experiência a condição de “um estar no outro mais do que ele mesmo está em si”. E nesse sentido Herrmann ainda reflete brevemente o lugar que esse sentimento habita no fazer clínico.
Referência
HERRMANN,F. Apeadeiros da Saudade.In: HERRMANN, F. Andaimes do Real: Psicanálise do Quotidiano. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2001,p.217-233.
HERRMANN,F.Bondade. In: HERRMANN, F. A Infância de Adão: e Outras Ficções Freudianas, São Paulo: Casa do Psicólogo. São Paulo,2002,p.35-38.
Este texto teve a participação do nosso parceiro Josué.J. Oliveira